Por: Ádna Gomes
A noite caia enquanto a chuva parecia lavar tanto o céu, quanto a carência do mundo. O brilho da lua servia de abraço àqueles que se sentiam distantes de tudo e todos que os rodeavam. Poderia jurar que a lua naquela noite viera para receber em um forte abraço Mercedes, avó de Beatriz. Enquanto a senhora sentada em sua cadeira de rodas, amarrada a fios conectados ao seu concentrador de oxigênio portátil, conseguia admirar aquela noite com olhos ternos e quiçá, de despedida. Acabando com um longo silêncio, Mercedes se vira a Beatriz, dizendo:
_Eu estou pronta para ir! — diz como se fosse sua única certeza no mundo.
_Vó, mas eu não estou. Não ainda. — diz enquanto lágrimas lhes saltam dos olhos. Mercedes lhe olha e lhe diz com amor.
_ Beatriz,
quero sentir o toque da chuva pela última vez. Beatriz ainda que contrariada,
com dor palpável e confusa em fazer o que é melhor para si ou para sua vó,
decide por colocar-se de lado e atender as súplicas de sua matriarca.
Empurrando a cadeira de rodas, Beatriz repassa todos os momentos em que passou
com a vó e começa a entender o que significa para ela ter esse contato com a
chuva. Para
Mercedes ainda que signifique a morte, também significa sentir o outro, sentir o mundo dela que já existe mais.
Às duas sentadas em uma distância que para Mercedes é muito, mas que se faz necessária, ainda assim, estão próximas. Quiçá, mais do que já tiveram. Intercalando os olhares entre a lua e sua neta, suas lágrimas se misturam com a chuva. Parece realmente lavar Mercedes e deixá-la mais leve, igual à própria chuva. Beatriz por fim, retira seus tubos de respiração, enquanto sua vó mesmo respirando mais fraco, parece indiscutivelmente em paz. As duas permanecem ali, como se esperassem juntas a morte. Mercedes ainda com forças tiradas de onde jamais se saberá pega sua neta de surpresa ao citar Mia couto.
É só um solavanco
Na estrada por onde já não caminhamos.
Morre-se tudo
Quando não é o justo momento.
E não é nunca
Esse momento.
Em uma pausa após sua citação, Mercedes encara a Beatriz com olhos de saudade, admirando sua neta pela ultima vez e nitidamente segurando o que ainda lhe resta de ar para dizer:
Beatriz
permanece ao lado de sua vó, ainda sem forças de sair dali, sem forças para
seguir, não por enquanto, não ainda. As lagrimas prontamente tomam posse do seu
rosto, seu peito parece estar a ponto de se partir. Ela se mantem sentada
perto do corpo agora sem vida e mais próximas que nunca, na vã tentativa de
parar o tempo. Beatriz
sabe que se vela também, que parte dela se foi com sua vó. Agora só fica o gosto amargo na boca de quem ainda tem uma vida inteira pela frente, a certeza de um vazio que nunca se preencherá e a obrigação com quem se foi de continuar o resto do caminho.