COm VIDa

    Por: Ádna Gomes

    A noite caia enquanto a chuva parecia lavar tanto o céu, quanto a carência do mundo. O brilho da lua servia de abraço àqueles que se sentiam distantes de tudo e todos que os rodeavam. Poderia jurar que a lua naquela noite viera para receber em um forte abraço Mercedes, avó de Beatriz. Enquanto a senhora sentada em sua cadeira de rodas, amarrada a fios conectados ao seu concentrador de oxigênio portátil, conseguia admirar aquela noite com olhos ternos e quiçá, de despedida. Acabando com um longo silêncio, Mercedes se vira a Beatriz, dizendo:

    _Eu estou pronta para ir! — diz como se fosse sua única certeza no mundo.

    _Vó, mas eu não estou. Não ainda. — diz enquanto lágrimas lhes saltam dos olhos. Mercedes lhe olha e lhe diz com amor.

    • Masquem vai, sou eu. Não nasci no seu mundo. Vivi um pouco do mundo antigo e é penoso estar nessa nova realidade. Senti o toque de minha mãe e de amores que tive na adolescência. Diferente do meu em que era significado de amor, no seu mundo, o meu toque pode machucar ou matar quem amo. — faz uma pausa, mas continua a falar, mesmo com a perceptível falta de ar.
    • O toque do outro me lembrava de que eu estava viva, de que existia. Agora, parece que flutuo sem fim e sem ninguém me esperando lá embaixo para me pegar. Eu não sei como foi lhe ter nos braços pela primeira vez, mas cada nervo do meu corpo se lembra de como foi segurar sua mãe. Pela primeira vez foi como se eu não estivesse mais flutuando, como se eu não estivesse mais sozinha. — segue dizendo com uma respiração dificultosa, voz embargada e um olhar de súplica.

    _ Beatriz, quero sentir o toque da chuva pela última vez. Beatriz ainda que contrariada, com dor palpável e confusa em fazer o que é melhor para si ou para sua vó, decide por colocar-se de lado e atender as súplicas de sua matriarca. Empurrando a cadeira de rodas, Beatriz repassa todos os momentos em que passou com a vó e começa a entender o que significa para ela ter esse contato com a chuva. Para

    Mercedes ainda que signifique a morte, também significa sentir o outro, sentir o mundo dela que já existe mais.

    Às duas sentadas em uma distância que para Mercedes é muito, mas que se faz necessária, ainda assim, estão próximas. Quiçá, mais do que já tiveram. Intercalando os olhares entre a lua e sua neta, suas lágrimas se misturam com a chuva. Parece realmente lavar Mercedes e deixá-la mais leve, igual à própria chuva. Beatriz por fim, retira seus tubos de respiração, enquanto sua vó mesmo respirando mais fraco, parece indiscutivelmente em paz. As duas permanecem ali, como se esperassem juntas a morte. Mercedes ainda com forças tiradas de onde jamais se saberá pega sua neta de surpresa ao citar Mia couto.

    • Morre-se nada Quando chega a vez

    É só um solavanco

    Na estrada por onde já não caminhamos.

    Morre-se tudo

    Quando não é o justo momento.

    E não é nunca

    Esse momento.

    Em uma pausa após sua citação, Mercedes encara a Beatriz com olhos de saudade, admirando sua neta pela ultima vez e nitidamente segurando o que ainda lhe resta de ar para dizer:

    • Não se preocupe. Nunca me senti tão próxima de você – e assim fecha seus, restando ali sobre a chuva um corpo sem vida, mas um rosto de quem em seus últimos minutos foi feliz.

    Beatriz permanece ao lado de sua vó, ainda sem forças de sair dali, sem forças para seguir, não por enquanto, não ainda. As lagrimas prontamente tomam posse do seu rosto, seu peito parece estar a ponto de se partir. Ela se mantem sentada perto do corpo agora sem vida e mais próximas que nunca, na vã tentativa de parar o tempo. Beatriz

    sabe que se vela também, que parte dela se foi com sua vó. Agora só fica o gosto amargo na boca de quem ainda tem uma vida inteira pela frente, a certeza de um vazio que nunca se preencherá e a obrigação com quem se foi de continuar o resto do caminho.