Por Renato Rodrigues de Lima Júnior
Em 1971, Mariana ainda se parecia com a cidade morta, arruinada e esquecida de depois do Ciclo do Ouro, mostrada, poeticamente, por Alphonsus de Guimaraens. Ele, em 1897, nos versos de “Villa do Carmo”, descreveu sua ruina com uma imagem que ressalta a religiosidade cristã do povo marianense: – “Os túmulos estão cobertos de urzes,/E não há mais uma cruz em pé.” Alguns anos depois, em 1911, personificando-a como a princesa Maria Ana d’Áustria, ele reafirmou sua ruina, acrescentando que se acomodara e vivia entorpecida, conforme expõe esta estrofe do “Hino do bicentenário de Mariana”:
“Quem é que me vem perturbar o meu sono
De bela princesa no bosque a dormir?
Que há muito caiu sobre o solo o meu trono,
Que era emperolado de perlas de Ofir!”.
Tal decadência e tal entorpecimento se instalaram em Mariana, porque a população local não tinha ciência de sua grande vocação para o Turismo, devida a seu patrimônio arquitetônico-artístico-paisagístico, e a sua memória cultural, ligada às artes, principalmente à literatura.
Ademais, na segunda metade do século XX, o Brasil estava em meio a uma ditadura militar e o prefeito Hélio Petrus Viana pertencia ao partido político Movimento Democrático Brasileiro (MDB), enquanto o partido Aliança Renovadora Nacional (ARENA) controlava o país. Em vista disso, a prefeitura carecia de recursos financeiros, para resolver os problemas mais básicos do Município.
Hélio, ciente do potencial turístico da cidade, procurava uma saída e aproveitou um encontro com o colunista social do jornal Estado de Minas Nicolau Neto, para falar da necessidade de se divulgar a cidade e da falta de recursos financeiros para se investir em publicidade. Nicolau Neto, como era o coordenador do concurso Miss Minas Gerais, lhe sugeriu que enviasse uma candidata, que ele arrumaria uma maneira de ajudar. Assim, vários nomes foram sugeridos, até que os vereadores Vanderlei Machado e João Bosco Carneiro apresentaram o nome de Eliane Parreira Guimarães, do distrito Passagem de Mariana, e o prefeito, por decreto, a elegeu Miss Mariana.
Ainda que vivêssemos um momento de terrível tirania, em que muitos brasileiros foram presos, torturados, exilados e assassinados pelos militares, como Carlos Antunes da Silva, morador de Mariana, que faleceu em decorrência de torturas no DOPS/BH.
E ainda que esse concurso de beleza fosse útil para tirar o foco da ditadura, ao distrair e iludir as massas; a eleição de Eliane abriu horizontes positivos, ao colocar Mariana em destaque no cenário brasileiro, no início da década de 1970. Momento em que se expandiam pelo mundo afora, os pensamentos e costumes revolucionários da otimista década juvenil de 1960.
Dessa época, basta lembrar o surgimento da pílula anticoncepcional; Mary Quant e a minissaia; o alegre movimento Hippie e seu lema “Paz e Amor”; o intrépido movimento Black Power, com os Panteras Negras e Angela Davis; as feministas do Women’s Liberation Moviment queimando sutiãs em público; o festival de Woodstock, um dos maiores festivais de rock da história; os protestos estudantis em Paris e Praga; as revoltas pelo assassinato de Martin Luther King; os gays enfrentando a polícia no bar The Stonewall Inn em Nova York; os protestos contra a guerra do Vietnã e contra as ditaduras sul-americanas, como a passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, e a passeata contra a censura também no Rio de Janeiro.
Não obstante tanta luta por mudanças comportamentais, no Brasil, como já foi dito acima, as coisas caminhavam na contramão. O Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi promulgado para suprimir direitos políticos e individuais. Antes disso, em São Paulo, já havia ocorrido até a Marcha contra a Guitarra Elétrica, liderada por Elis Regina. Em 1969, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e vários outros artistas foram mandados para o exílio. E, justamente, em 1971, os renomados atores e diretores Julian Beck, Judith Malina e o Living Theater (um grupo teatral de vanguarda) foram presos em Ouro Preto, censurados e deportados grosseiramente. A prisão gerou protestos até nas páginas do jornal The New York Times e um manifesto internacional, assinado por grandes personalidades do mundo, foi enviado ao governo brasileiro.
Mesmo com a ditadura militar exercendo tamanha censura e opressão, é indiscutível que uma revolução de costumes ocorria, porque, em todo o Ocidente, os anseios de liberdade e paz da juventude estavam sendo insuflados, glorificados e explorados pela mídia e pela indústria, através da música, da moda e do comportamento.
Lembre-se do estrondoso sucesso mundial dos Beatles, com suas franjinhas e terninhos sem gola, índices juvenis que lhes garantiam o direito a algazarras e liberação dos impulsos. Aqui no Brasil, seguindo a mesma onda, lembre-se do enorme sucesso da Jovem Guarda, em um programa de televisão, capitaneado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. Eles, além de cantarem, também estrelaram filmes e até lançaram a marca de roupas juvenis Calhambeque.
Por causa de suas músicas juvenis românticas, alguns pesquisadores afirmam que a Jovem Guarda foi útil aos militares, ao promover a alienação da juventude, afastando-a de um suposto Comunismo.
Assim, o Miss Brasil 1971, um tradicional evento de cultura de massa, visto, na época, apenas como um evento de beleza, possibilita-nos uma reflexão, voltada para beleza, moda, história, comportamento e cultura desse momento mundial em que os jovens sacudiram as estruturas da sociedade, porque Eliane não agradou ao grande público apenas com sua beleza. Seu carisma, sua elegância, seu recato e sua simpatia (qualidades, tipicamente, mineiras) agradaram a todos. Haja vista, o depoimento da Miss Guanabara Lúcia Tavares Peterle à revista Manchete (17 jul. 1971, p. 19): “… nas poucas vezes em que a encontrei, sempre me pareceu simpática, isso sem falar em sua beleza, graça e corpo ideais, que acabaram por seduzir o júri.” Também leia, na mesma revista, o seguinte comentário de um de seus articulistas: “Sua vitória foi das mais tranquilas dos últimos anos.
Conseguiu 60 pontos contra 52 da segunda. Mas foram o apoio e a vibração das quase vinte mil pessoas presentes ao Maracanãzinho o grande segredo de sua escolha.”
Tantos predicados reunidos ajudaram Eliane a romper com o arquétipo da Miss romântica, que apenas lera o livro O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, enquanto esperava um marido rico; pois a revelaram como um singelo exemplo de modernidade, por ela estar atenta aos novos costumes e à moda juvenil da época: observe seu cabelo longo partido ao meio, pois esse penteado indicia afetividade e até desejo de se perder a virgindade, segundo a professora e ensaísta Alison Lurie no livro A linguagem das roupas (1997, p. 253); note o macaquinho curto do traje típico, usado com botas de cano longo, um hit daquela época. Além disso, na década de 70, não era comum a uma moça de família interiorana desfilar de maiô e sair à noite para dançar bilisquete, sem que sua reputação fosse deslustrada pelos conservadores.
E ela ainda dirigia o próprio carro, era professora do que conhecemos, atualmente, como Ensino Fundamental, além de universitária (Eliane estudava na Escola de Farmácia, da, hoje, Universidade Federal de Ouro Preto), quando poucas mulheres frequentavam o ambiente acadêmico.
Por conseguinte, seria interessante a prefeitura marianense resgatar essa memória cultural e promover uma exposição, acessível à população, com toda uma documentação histórica, relacionada à Miss Brasil 1971 e quinta colocada no Miss Universo. Por que não expor os croquis de seus trajes (criados por um desconhecido e esquecido estilista mineiro), fotos desses trajes ou mesmo cópias, pois seu vestido de gala: um longo preto chique e discreto transmite nobreza e dignidade, enquanto seu traje típico estilizado é invulgar e atual até hoje.
Há também suas roupas para eventos sociais, como o microvestido, usado com as botas de cano longo, em Miami, e seus maiôs Catalina.
Da mesma forma, seria curioso ver suas faixas, capas, coroas e cetros de miss.
Ouvir as histórias dos bastidores dos desfiles e dos bastidores da Socila (com Maria Augusta e sua famosa bengala). Apreciar suas fotos com personalidades (renomadas misses e a famosa atriz brasileira Florinda Bulcão, que residia na Itália e veio visitar Mariana em sua companhia, …).
Conhecer os produtos de maquiagem Gitane, da marca Helena Rubinstein; os presentes que ela ganhou (como o belo colar e o aerodinâmico Dodge Charger); ver as revistas semanais Manchete e O Cruzeiro, os jornais e vídeos (com reportagens, artigos, notícias, entrevistas); ouvir as trilhas sonoras dos desfiles…
Toda essa documentação comporia uma rememoração criativa desse momento histórico em que ventos de uma nova Era sopraram em Mariana, trazendo otimismo e alegria; quando não havia boas expectativas e tudo parecia perdido. Se bem feita, tal exposição poderia recolocar a cidade na mídia de forma positiva e ainda poderia despertar os sonhos e anseios das novas gerações marianenses do século XXI, diante da destruição, ruina e mau agouro que as mineradoras vem espalhando, ao apagarem nosso patrimônio, nossa cultura, nossa história, nosso povo e nossa autoestima.
Hoje, Mariana já não se enquadra mais no retrato afetuoso que Eliane esboçou na entrevista, concedida à revista Manchete (17 jul. 1971, p. 19):
“Das nossas cidades é talvez a que mais guarda em suas ladeiras, ruas e travessas, as tradições do barroco e colonial brasileiros. Seu povo conserva o melhor dos costumes mineiros, é essencialmente religioso, muito amigo e hospitaleiro.”
Isso ocorre, porque os órgãos responsáveis por sua preservação não têm compromisso com a cidade e muito menos leram as seguintes palavras do professor doutor em planejamento urbano Eduardo Yazigi, divulgadas no livro Turismo: espaço, paisagem e cultura (1999, p. 134):
“Um monumento isolado, de significado autônomo, mostrou-se muito longe de contribuir para uma verdadeira consciência histórica que é o grande vértice da preservação da paisagem. A este novo conceito consagrou-se a expressão patrimônio ambiental urbano: seja, o conjunto de elementos arquitetônicos, adornos, equipamentos, símbolos, espaços livres, espécies naturais, graças a seus valores históricos, sociais, culturais, técnicos, formais e afetivos em suas múltiplas inter-relações. É justamente isto que vem sendo destruído, ao lado de grandes paisagens naturais.”
Enquanto isso, nós marianenses, podemos bem observar o resultado desse vandalismo todos os dias, quando passamos pelas praças Cláudio Manoel e Gomes Freire, assim como por outros pontos do centro histórico, dos quais foi apagada a atmosfera interiorana, rústica e bucólica, característica das cidades históricas mineiras, para dar lugar a revitalizações insípidas e modernosas.
E se não bastasse a semelhança entre o fim dos dois Ciclos minerais, trazendo mais ruína para Mariana; por trás das montanhas, uma nova ditadura militar nos espreita e atemoriza. Que Deus nos proteja e nos inspire a encontrar uma saída!
Renato Rodrigues de Lima Júnior
educador