Análise da Lei nº 14.188/2021: lesão corporal por razões de condição de sexo feminino e violência psicológica contra a mulher

    Por Bruno Gilaberte

    1- Introdução

    A violência contra a mulher, quinze anos após a edição da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), continua endêmica no Brasil. No ano de 2019, a taxa de homicídios contra mulheres em solo nacional apresentou acentuada queda (14,1%) em relação ao ano anterior. Contudo, a de feminicídios, ou seja, quando há motivação de gênero, aumentou 7,3% em relação a 2018.[1] Em 2020, mesmo diante das restrições à circulação de pessoas determinadas por medidas sanitárias preventivas, houve 1.338 feminicídios, alta de 2% em relação a 2019.[2]

    Mais do que nunca, são pertinentes as iniciativas legislativas tendentes a oferecer proteção acentuada às mulheres, notoriamente vulneráveis em tema de violência doméstica ou familiar. Amparado por esse panorama, o Senado Federal aprovou, em 01/07/2021, o Projeto de Lei nº 741/2021, encaminhado à sanção presidencial. Esse projeto se transformou na Lei nº 14.188, de 2021.

    Há méritos na lei, como a institucionalização do programa de cooperação Sinal Vermelho, que facilita o pedido de auxílio por mulheres vítimas. O mesmo diploma alterou o Código Penal, modificando a estrutura do art. 129 do CP (com a inclusão do § 13) e criando o crime de violência psicológica, inserto no recém-criado art. 147-B, CP. Aqui surgem os deméritos: inegavelmente dotado de boas intenções, o legislador pecou, subvertendo as bases dogmáticas do direito penal para criar tipos penais de duvidosa constitucionalidade e complexa aplicabilidade prática, impondo-se crítica doutrinária ao esforço empreendido. Passemos, pois, ao estudo das inovações.

    2- Lesão corporal praticada por razões de condição de sexo feminino

    “§ 13. Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos”

    O crime de lesão corporal ganhou o seu décimo terceiro parágrafo, cinco a mais em relação aos oito originais. Desta feita, a inovação – que contempla um tipo qualificado – se mostra problemática, pois decorre de atuação meramente simbólica e desapegada da boa técnica legislativa.

    O tipo que exsurge da nova lei se assenta em certa qualidade especial da vítima, atrelada a uma motivação específica concernente ao autor. Assim, o primeiro requisito para a incidência da norma é que a vítima seja mulher. Não há o incremento das margens penais se a vítima é homem. A esse requisito, adita-se outro: o crime tem que ser praticado por razões da condição do sexo feminino, consoante definição do § 2º-A do art. 121 do CP.

    Vítima mulher é a pessoa do gênero feminino. Ainda que a norma fale em “razões da condição de sexo feminino”, a interpretação de “sexo” como “gênero” é a única que respeita a axiologia constitucional. Não se trata, de forma alguma, de analogia prejudicial em norma incriminadora, vedada pelo princípio da legalidade, mas de conclusão hermenêutica permitida pela própria estrutura normativa: o art. 121, § 2º-A, afirma que há razões de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica ou familiar contra a mulher, conceito este presente no art.  da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha); o caput deste mesmo art. 5º conceitua violência doméstica ou familiar contra a mulher como a ação ou omissão baseada no gênero. Ou seja, o art. 121, § 2º-A e, consequentemente, o art. 129, § 13, ao remeterem à Lei Maria da Penha, importam do diploma especial o tratamento de gênero, não de sexo. Não poderia ser diferente, pois mulheres transgênero são igualmente vulneráveis nas relações sociais. Além disso, a Constituição Federal, ao fundar a República na dignidade da pessoa humana e estabelecer o repúdio ao preconceito e à discriminação como objetivo fundamental, exige essa conclusão. Em outras palavras: um tratamento diferenciado apenas às mulheres biologicamente assim consideradas viciaria o dispositivo, tornando-o inconstitucional.

    As “razões da condição de sexo feminino”, ao seu turno, existem quando o crime envolve: (a) violência doméstica ou familiar, assim entendidas aquelas situações arroladas no art.  da Lei Maria da Penha; e (b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Ainda que de forma minoritária, compreendemos que as duas situações são de natureza subjetiva, tratando-se de motivos determinantes.[3] Adverte-se desde logo que o artigo como um todo seguirá essa orientação.

    A primeira hipótese (violência doméstica ou familiar contra a mulher), alcança quase todas as situações que antes permitiam a aplicação do § 9º do artigo 129 à vítima mulher. Como se sabe, o art. 129, § 9º, prevê o crime de violência doméstica, que pode ser praticado contra vítima de qualquer gênero, homem ou mulher. Por exemplo, tanto a agressão do marido contra a esposa, como dessa contra aquele, serviam à adequação típica no § 9º. Esse panorama mudou. Hoje, quando a vítima da lesão corporal for mulher e a agressão for baseada no gênero (situação de especial vulnerabilidade), o crime será o previsto no art. 129, § 13.

    O que se mantém, então, na esfera do art. 129, § 9º? Primeiramente, a lesão corporal leve praticada contra a vítima do gênero masculino, caso entre autor e vítima exista um vínculo de parentesco ou afetividade, em curso ou já findo, ou prevalecendo-se o agente de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. No caso de vítima do gênero feminino, a única possibilidade de incidência do § 9º referir-se-á às hipóteses em que entre vítima e autor há um vínculo de parentesco ou afetividade, em curso ou já findo, ou prevalecendo-se o agente de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, desde que a violência não seja baseada no gênero, isto é, sem ter como pano de fundo uma especial vulnerabilidade da vítima.

    Tal qual ocorre com o art. 129, § 9º, o § 13 versa sobre uma lesão necessariamente dolosa. Essa lesão também é de natureza leve, por uma questão de proporcionalidade. Vejamos: quando a vítima é homem e sofre uma lesão corporal de natureza grave, o agressor fica sujeito a uma pena de um a cinco anos de reclusão. Se a lesão é de natureza leve, a pena é de reclusão, de três meses a três anos, em caso de violência doméstica (detenção de três meses a um ano em um contexto distinto da violência doméstica). Pois bem. O crime praticado contra mulher em razão da condição de sexo feminino é evidentemente mais reprovável do que a lesão praticada contra homem, que não envolve questões de gênero. No § 13, a reprovabilidade da conduta é expressa na qualidade (reclusão) e no tamanho da sanção (um a quatro anos). O tratamento ao agressor de mulheres, portanto, é mais severo do que aquele dispensado ao agressor da vítima homem, em caso de lesão leve. Se entendermos que o § 13 alcança também os casos de qualificação pela lesão grave, essa lógica seria subvertida, pois o agressor da vítima homem (art. 129, § 1º) seria apenado com uma sanção superior (um a cinco anos) à aplicada ao agressor da vítima mulher (um a quatro anos). Preservando, pois, a coerência normativa, não há outra interpretação possível senão o reconhecimento da natureza de lesão leve nos resultados admitidos pela nova norma penal (§ 13). A lesão qualificada pelo resultado continua exigindo subsunção aos §§ 1º a 3º, seja qual for o gênero da vítima.

    Não há qualquer violação à proporcionalidade, pensamos, na pena cominada abstratamente ao tipo qualificado do § 13. Quando a norma incriminadora exaspera as margens penais, ela o faz não apenas em virtude do atingimento aos bens jurídicos comuns a todas as vítimas de lesão corporal (integridade corporal ou saúde), independentemente de gênero; também não é a violação da fraternidade inerente às relações afetivas, familiares ou domésticas que determina a elevação da pena. É o vilipêndio aos princípios da dignidade humana e da igualdade.

    A agressão baseada no gênero nega à mulher uma condição paritária à do homem, concebendo-a como uma pessoa detentora de menos direitos, muitas vezes chegando ao limiar da reificação. Dürig, em sua Fórmula do Objeto, preconizava que “nenhum homem pode ser degradado à categoria de coisa e, consequentemente, não pode ser registrado, aniquilado, liquidado, suprimido, usado, eliminado ou submetido à lavagem cerebral”. A reificação, portanto, é atentatória à dignidade humana. Não por outro motivo, o parágrafo único do art.  da Lei Maria da Penha afirma que a violência doméstica e familiar contra a mulher é uma das formas de violação de direitos humanos. Essa é a mesma justificativa que permitiu ao Supremo Tribunal Federal reconhecer a constitucionalidade da sanção cominada ao art. 140§ 3º, do CP (HC nº 109.676). Há, portanto, argumentos suficientes para admitir a legitimidade das margens penais ora estabelecidas.

    Isso não significa que todas as perplexidades envolvendo o princípio da proporcionalidade sejam resolvidas a contento. O § 10 do art. 129 majora a pena da lesão corporal qualificada pelo resultado em um terço quando o crime é praticado nas circunstâncias indicadas pelo § 9º. Assim, se pai e filho brigam e este agride aquele, provocando debilidade permanente de função, o agressor suportará uma pena de reclusão, de um a cinco anos (art. 129§ 1ºIIICP), aumentada em um terço (art. 129, § 10). Ou seja, pena mínima de um ano e quatro meses e máxima de seis anos e oito meses de reclusão. E se o crime for praticado contra uma mulher, por discriminação à condição feminina, com provocação do mesmo resultado? Já se sabe que essa discriminação é uma condição de maior reprovabilidade (o que faz com que a pena do § 13 seja superior à pena do § 9º). Nesse caso, não incidiria a majorante do § 10, pois o crime não foi praticado nas circunstâncias indicadas pelo § 9º (e sim naquelas indicadas pelo § 13). O agressor preconceituoso, destarte, seria punido com uma pena de reclusão de um a cinco anos de reclusão, sem qualquer aumento. Essa mesma distorção ocorre também no que concerne ao § 11 (majoração de um terço quando o crime de violência doméstica é praticado contra pessoa portadora de deficiência).

    3- Violência psicológica contra a mulher

    “Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena — reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.”

    A vítima do delito é sempre a mulher, aqui entendida como a pessoa do gênero feminino. Portanto, existe crime de violência psicológica, por exemplo, quando a pessoa atingida é a mulher transgênero.

    O homem jamais poderá ser sujeito passivo do delito em apreço e nisso não reside nenhuma espécie de violação à igualdade entre os gêneros, pois a proteção diferenciada se justifica quando há o reconhecimento de que certas categorias de pessoas estão em situação de especial vulnerabilidade. Assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19. No plano convencional, o art. 4º da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Res. nº 34/180, de 1979) autoriza as discriminações positivas.

    O sujeito ativo, ao seu turno, pode ser qualquer pessoa. Frise-se que a norma não exige nenhuma relação especial entre autor e vítima, seja de parentalidade, conjugalidade ou qualquer outra. Assim, embora o tipo penal seja inspirado pela Lei Maria da Penha, contextualmente dela se desapega, pois a violência psicológica independe de sua prática no âmbito das relações domésticas, familiares ou afetivas. É possível, por exemplo, que seja praticada por um ministro religioso contra uma fiel, situação que certamente demandaria uma apreciação mais esmerada, dada sua possível colisão com a liberdade religiosa (qual seria a fronteira entre a liberdade e a violência?).

    Isso não significa que a Lei Maria da Penha jamais incida sobre o delito de violência psicológica: de acordo com o seu art. 7º, II, essa incidência ocorrerá sempre que o crime for praticado nas hipóteses descritas no art. 5º do diploma especial.

    A conduta incriminada consiste em causar dano emocional à mulher, deixando de especificar no que consiste esse dano. A expressão é demasiadamente aberta, contemplando desde as lesões psíquicas até os abalos morais, padecendo de falta de taxatividade, ainda que danos ínfimos possam ser desconsiderados de plano, pela aplicação do princípio da insignificância (com a ressalva de que STJ – na Súmula 589 – e o STF – como no RHC 133043 – são refratários ao reconhecimento da insignificância nas situações de aplicabilidade da Lei Maria da Penha). A parte final da norma, contudo, oferece uma restrição conceitual, exigindo que se compreenda o dano como o resultado que afeta a saúde psicológica e a autodeterminação da vítima.

    O dano emocional, portanto, necessariamente corresponde a uma lesão psíquica, à qual é agregada a afetação da autodeterminação feminina. Partindo-se desse entendimento, algumas cautelas na subsunção da conduta ao tipo penal em estudo devem ser observadas.

    Saliente-se, de início, que lesões psíquicas são espécie do gênero lesão corporal (assim como as lesões anatômicas e as funcionais). Isso significa que, ao menos em tese, a provocação de uma lesão psíquica pode ensejar a capitulação da conduta no art. 129 do CP. Essas lesões, doravante, passam a ser previstas também no art. 147-B (desde que presentes as demais elementares), que é expressamente subsidiário a tipos penais mais graves.

    Suponhamos, assim, que, em virtude de recorrente humilhação, praticada pelo sujeito ativo em virtude de menosprezo à condição de mulher, a vítima passe a sofrer de síndrome do pânico, mantendo-se reclusa em sua casa por medo de acessar logradouros públicos. Essa situação caracteriza o crime previsto no art. 129, § 13, do CP (lesão corporal contra mulher em razão do sexo feminino), que prevalece sobre o art. 147-B, por ser delito mais grave. A resposta é a mesma se, não existindo a condição de sexo feminino exigida pelo § 13 do art. 129, a lesão é qualificada pelo resultado (por exemplo, se impede o exercício das ocupações habituais por mais de trinta dias, ou se representa enfermidade incurável). Contudo, se não existe a condição de sexo feminino e a lesão é leve, o art. 147-B prevalecerá sobre o art. 129, caput, desde que, além da afetação à saúde psíquica, o agente provoque prejuízo à autodeterminação feminina. Inexistindo esse segundo prejuízo, o crime será o do art. 129, caput.

    Situação curiosa ocorre no confronto do art. 147-B com o crime de violência doméstica, previsto no art. 129, § 9º. Tomemos como exemplo o caso da mãe que pratica violência psicológica contra a filha, sem que essa conduta seja baseada no gênero da vítima (ou seja, o crime não foi praticado porque a vítima é mulher), causando-lhe prejuízo à saúde psíquica e à autodeterminação. Não há se falar no crime do art. 129, § 13, pois a ação não foi motivada por razões de sexo feminino, mas em violência doméstica (art. 129, § 9º). A pena da violência doméstica é simultaneamente menos grave (no que concerne à margem penal mínima, ou seja, três meses de reclusão) e mais grave (em sua margem penal máxima, três anos de reclusão) do que a pena da violência psicológica. Deve ser considerado, no entanto, que o crime do art. 147-B é uma infração de menor potencial ofensivo (se a violência, no exemplo dado, não é baseada no gênero, não incide a Lei nº 11.340/2006), o que torna o art. 129, § 9º, um crime mais grave, fazendo com que esta norma prevaleça.

    Ainda em tema de concurso aparente de normas, o art. 147-B predomina sobre uma série de outros delitos, como os crimes contra a honra – com exceção da injúria por preconceito –, o constrangimento ilegal, a ameaça e a perseguição, desde que presentes as demais elementares (dano à saúde psíquica + afetação da autodeterminação).

    Nessa esteira, importa assinalar que o dano emocional deve prejudicar a mulher e perturbar seu pleno desenvolvimento, ou visar a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças ou decisões.

    Partamos do pressuposto que todo dano emocional é prejudicial à vítima, ou não seria um dano. Assim, compreendemos que o prejuízo decorre necessariamente de uma perturbação ao pleno desenvolvimento feminino (e, justamente por isso, o legislador usou a conjunção aditiva e entre as expressões). Perturbar o pleno desenvolvimento feminino é uma expressão imprecisa, que não oferece um mínimo de taxatividade para que se repute respeitado o princípio da legalidade, redundando em inconstitucionalidade por afronta ao art. XXXIX, da CRFB. No entanto, considerando que os tribunais costumeiramente não realizam a – obrigatória – análise da taxatividade, deve-se empreender um esforço interpretativo. A expressão se refere a qualquer forma de tolhimento das potencialidades, seja no que concerne ao aspecto fisiopsicológico, seja no que tange às habilidades sociais, afetando a essência individual. Nessa toada, o dano emocional que limita o desenvolvimento cognitivo, ou que embaraça aptidões artísticas, intelectuais ou profissionais, entre outras hipóteses, é perturbador do pleno desenvolvimento.

    O dano emocional também pode visar a degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças ou decisões da mulher, ainda que não lhe cause efetivamente perturbação do pleno desenvolvimento. Temos, aqui, um dano direcionado à degradação ou ao controle, ou seja, ao causá-lo, o autor pretende atingir essas finalidades (ainda que efetivamente não o consiga). Degradar significa deteriorar, desgastar. O sujeito ativo, por exemplo, pode causar a intervenção emocional para fazer com que a vítima tenha dúvidas acerca de sua capacidade de decidir corretamente, degradando sua assertividade. Controlar significa governar. Ou seja, o autor assume o comando de aspectos da vida da vítima, impondo modos de pensar, de agir etc. Assim, faz com que a vítima, por exemplo, deixe de frequentar determinados lugares, ou impede-a de escolher sua vestimenta, solapando a liberdade individual feminina.

    A norma se vale de casuísmo ao enumerar os meios executórios, para, ao final, estabelecer uma cláusula genérica. Assim, o dano emocional pode ser causado por ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. A opção legislativa, em alguns trechos, rompe para com a sistemática das leis penais.

    Tomemos como exemplo a palavra “constrangimento”. No Direito Penal brasileiro, é usada quase que exclusivamente como coação mediante violência ou grave ameaça. Esse modelo sofreu uma ruptura por ocasião do advento do delito de assédio sexual (art. 216-ACP), o que gerou inúmeras críticas e dúvidas hermenêuticas acerca da correta acepção a ser conferida ao termo. As divergências interpretativas certamente surgirão também no art. 147-B, pois a palavra “constrangimento” aparece logo após “ameaça”, denotando que o legislador cuidou da grave ameaça em apartado. O que seria então o constrangimento? O uso da violência, tão-somente? Ou teria a conotação de embaraçar, perseguir, assediar, como defende parte da doutrina na seara do assédio sexual? Independentemente da conclusão, certo é que, aqui, a divergência tem a sua importância diminuída, pois a cláusula genérica subsequente permite a adoção de uma variada gama de meios executórios.

    Perceba-se que o meio executório somente adequar-se-á ao tipo penal do art. 147-B do CP se causar prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da vítima. Esse último trecho deixa evidente que o crime é material, exigindo duplo resultado (afetação da saúde psíquica e da autodeterminação), consumando-se quando o último resultado ocorrer (qualquer que seja ele), ainda que a simultaneidade seja possível. Não há ressalvas quanto à possibilidade de tentativa.

    Por derradeiro, fica claro que o crime é invariavelmente doloso. Assim, por exemplo, em uma relação conjugal, se um dos cônjuges é indiferente ao outro e isso afeta a autoestima do parceiro a tal ponto que surja um dano emocional limitador da autodeterminação, mas esse processo é desconhecido por aquele que demonstra a indiferença, não há delito a ser apreciado.

    Fonte: https://profbrunogilaberte.jusbrasil.com.br/