Por: Carolina Gabrich e Adelina Barbosa Nunes
Os dias 04, 05, 06, 07 e 09 de abril marcaram a segunda edição da Conferência Municipal de Saúde Mental de Mariana – MG. Após sugerir a pauta de saúde mental da população negra marianense, recebi um questionamento: “Por que fazer uma matéria focada em um grupo racial ao falar de saúde mental?”.
Essa pergunta não é incomum, junto com ela vem tantas outras que seguem a ideia de que falar da população negra seria segregar a sociedade. Contudo, é preciso tomar cuidado com essa pseudo igualdade entre as raças, que tanto foi propagada pelo governo brasileiro, apoiado na teoria da democracia racial, ideia que negava as desigualdades e conflitos entre raças, em uma leitura parcial e harmoniosa das operações da colonização.
Democracia racial é um termo desenvolvido pelo pesquisador Gilberto Freyre, que defendia a ideia de que no Brasil não havia nenhum tipo de diferenciação entre as raças, vendendo a visão de um “paraíso racial” através da folclorização da cultura dos povos pretos.
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Muitos podem estar se perguntando, por que é preciso tomar cuidado com as ideias de igualdade entre as raças? Não seria o Brasil, de fato, o paraíso das raças? Poderia responder essa pergunta recorrendo a diversos testemunhos de companheiros de luta, ou mesmo a pesquisas socialmente aceitas, no entanto, vamos ao indiscutível, os dados.
Segundo uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde, em 2018, jovens negros do sexo masculino e idades entre 10 e 29 anos tem a probabilidade 45% maior de morrer por suicídio do que jovens brancos na mesma faixa etária.
A questão do suicídio é um ponto interessante para analisar, não só a questão da saúde mental dos homens negros, como também a forma com que o Estado continua reverberado o mito da democracia racial.
No artigo “Racismo e os efeitos na saúde mental”, a pesquisadora Maria Lúcia da Silva também responde essa mesma pergunta, ela diz: “As atitudes racistas são incorporadas às estruturas sociais, incluindo instituições políticas, educacionais, de saúde e diferentes equipamentos do Estado, causando acesso e tratamentos desiguais, que, na maioria das vezes, são imperceptíveis ao conjunto da sociedade, mas são, quase sempre, considerados pelos negros como ato persecutório. Estando no centro de uma dinâmica muito complexa, na qual se sentem ora perseguidos ora perseguidores, os negros vivem num estado de tensão emocional permanente, de angústia e de ansiedade, com rasgos momentâneos dos distúrbios de conduta e do pensamento, o que os inquieta e os faz sentir culpa. Essa situação causa diversos transtornos físicos e psíquicos às vítimas, incluindo taquicardia, ansiedade, ataques de pânico, depressão, dificuldade de se abrir, ataques de raiva violenta e aparentemente não-provocada, depressão, hipertensão arterial, úlcera gástrica, alcoolismo, entre outros”.
A psicóloga Adelina Barbosa Nunes, que também é integrante do Movimento Negro de Mariana, explica que: “Muitas vezes pensamos a saúde mental como um atributo ou condição individual, mas ela é coletiva. Quando falamos em saúde mental da população negra, estamos jogando luz para as condições que esta população vive e que exige muito mais da sua condição psicológica em comparação ao grupo racial branco. A condição psicológica não é como um músculo que quanto mais se esforça ele fica mais forte, a conta desamparo + ausências de direitos fundamentais + vulnerabilidades sociais + discriminações = não faz um sujeito mais capaz de lidar com as angústias existenciais.
É preciso ter um ambiente acolhedor, amparado e saudável para que os recursos subjetivos e as possibilidades de resiliência se desenvolvam. Ou seja, a saúde mental depende de condições internas e externas à pessoa”. Disse Adelina Barbosa Nunes.
A partir dessa visão, de que a exposição a mais sofrimentos não é sinônimo de fortalecimento da saúde mental, podemos começar a entender os prejuízos que o racismo causa à saúde mental da população negra. Segundo levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro e pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), quase 7 em cada 10 mortos ou feridos por abordagens policiais entre 2013 e 2018, em Minas Gerais, são negros. O mesmo estudo aponta que pessoas negras têm quatro vezes mais chances de sofrer violência policial durante as abordagens do que as pessoas brancas. A maioria das vítimas são jovens negros de até 29 anos, sendo um terço composto por crianças negras.
A violência policial contra homens negros também afeta para as companheiras e familiares das vítimas, visto que elas carregam a constante incerteza sobre a segurança dos seus entes queridos, fato que leva à ansiedade, ao pânico e a angústia.
Além disso, é importante fazer uma análise que considere gênero ao falar de saúde mental da população negra, porque, apesar das violências terem o racismo em comum, a violência a que as mulheres estão expostas se diferenciam da que os homens estão expostos.
A mulher negra lida com a hipersexualização e objetificação do seu corpo desde muito cedo, em vista disso, no ano passado a revista Criola publicou um dossiê que retrata as violações de direitos das mulheres negras e como isso impacta na saúde reprodutiva. Os dados apontam que as mulheres negras foram o grupo que mais sofreu com o desemprego durante a pandemia, fator que as coloca no topo da vulnerabilidade econômica. Além disso, as mulheres negras também são as que sofrem mais óbitos em decorrência do aborto, sendo 45,21% a taxa referente as mulheres negras frente 17,81% das mulheres brancas. Além disso, um estudo de 2017, realizado pela Universidade Federal da Bahia, informa que as mulheres negras sofreram 73% dos casos de violência sexual no Brasil, naquele ano. A invisibilizarão das mulheres negras e objetificação de seus corpos ocorre no Brasil desde que as terras indígenas foram invadidas e os africanos sequestrados, ele só assumiu diferentes formas conforme o passar do tempo. As mulheres negras foram as que mais ocuparam os “quartinhos de empregada”, vivendo em uma situação de subemprego, longe dos familiares e do seu grupo social, dormindo e acordando no trabalho. Mesmo após a PEC das domésticas, emenda aprovada em 2013 que garantia direitos trabalhistas básicos às empregadas domésticas, muitas empregadas continuaram a viver situações de subemprego. Um estudo realizado pelo Instituto de pesquisa econômica aplicada (Ipea) mostra que, mesmo 7 anos depois da regularização do trabalho doméstico, 70% dessas profissionais não possuem carteira assinada.
O assunto da vulnerabilidade a que as empregadas domésticas estão expostas é um ponto muito sensível ao falar de saúde mental das mulheres negras, isso porque, segundo dados, também do Ipea, publicados em 2020, 68% das mulheres que exercem essa profissão são negras.
As mulheres negras também são as mais afetadas pela escravidão nos tempos atuais, como foi o caso de Madalena Gordiano, escravizada desde os 8 anos para atuar no trabalho doméstico da família de Maria das Graças Milagres Rigueira. Madalena foi resgatada aos 46 anos, em 27 de novembro de 2020, dando início a uma série de denúncias de outras mulheres, em sua maioria negras, que estavam em situação semelhante a de Madalena. A vulnerabilidade financeira, social, sexual e reprodutiva são fatores que contribuem para enfraquecer a saúde mental das mulheres negras.
Ainda segundo Psicóloga Adelina Barbosa Nunes, estudos contemporâneos dos efeitos do racismo desenvolvidos no país pelas Doutoras Jeane Tavares e Lia Vainer Schucman, assim como nos Estados Unidos, pela escritora Bell Hooks, indicam que o racismo expõe as pessoas negras a experiências de desamor, de exclusão e subjugação sistemática, contribuindo para exposição a situações de risco, como exposição à violência, uso abusivo de álcool e outras drogas, dificuldade de autocuidado, ruptura de vínculos afetivos, dificuldade de concentração e quadro de desesperança persistente. O racismo mata simbolicamente e fisicamente. “O embranquecimento, físico e simbólico, como única via de humanidade, beleza e inteligência precisa ser superado”.
Após discorrer sobre alguns dos fatores que influenciam na vulnerabilidade da saúde mental dos homens e mulheres negros e negras, e considerando que Mariana é uma cidade majoritariamente negra, é emergente que a saúde pública se comprometa com o enfrentamento do racismo nas instituições e passe a propor ações de promoção a saúde representativas e valorativas da cultura, saberes e tradições do povo preto, tão presente na cidade, como são as batalhas de rap, o congado, as raizeiras e benzedeiras, os terreiros, a culinária, a estética, enfim, é preciso voltar o olhar para as necessidades da maioria da população marianense.
*Carolina Gabrich e Adelina Barbosa Nunes são estudantes de jornalismo da UFOP.
contato: carolinagabrich@hotmail.com.