João Miguel gostava do silêncio matutino e domingueiro da encantadora cidade de Ouro Preto. Aos domingos pouco depois de raiar o dia, já era visto sentado num banco de pedra no adro da Igreja do Bom Jesus de Matozinhos do Bairro Cabeças. A quietude do lugar era o cenário perfeito para suas reflexões acerca da vida.
Para receber notícias no seu WhatsApp clique aqui
E para receber notícias da nossa página no Facebook
Se inscreva no nosso canal do you tube para receber nossas reportagens, clique aqui
Tinha sempre a mão uma caneta esferográfica de cor azul. Tal objeto tinha a função de grafar nas folhas do seu caderno, seus pensamentos e segredos.
Travava com as palavras que escrevia um diálogo silencioso e expressivo, percebido pelos movimentos de sua face quando seu olhar se perdia na brancura das páginas de seu caderno.
A brisa suave das manhãs de domingo lhe causava um frescor relaxante, e sentado no banco de pedra conseguia sintonizar harmonicamente corpo e alma.
Sua natureza solitária associada a seu gosto pela escrita, se incorporavam ao ambiente fazendo com que as palavras fossem dando forma a seus sentimentos.
Mas o fato de estar ali quase todos os domingos causava estranheza aos moradores dos arredores e também aqueles que tinham o trajeto como rota.
As pessoas passavam e pensavam que era um estudante morador de alguma república, que fugindo da agitação, buscava privacidade e concentração para seus estudos.
Mas também tinha aqueles que pensavam diferente, pois João Miguel não tinha em suas feições o semblante jovial característico da massa estudantil. Contudo ninguém procurava entender o que ele fazia ali, as observações e impressões eram apenas pela sua constância em estar sempre no mesmo lugar.
Quando sentava sobre o imenso banco de pedra e colocava no colo seu caderno de capa grossa e de cor azul, deixava escapar expressões de profunda alegria. Eram os relatos domingueiros que naquele lugar extrapolavam o universo do pensamento para se transformar em palavras afáveis explicando um acontecimento importante para ele.
Já fazia quase um ano que ele repetia essa prática, e seu caderno já passava da metade de tanto que havia escrito ao longo desse tempo.
Aquele caderno azul era um diário onde confidenciava seus segredos mais íntimos e dentre os tantos relatos nele contidos, tinha um segredo que ocupava quase a totalidade dos escritos.
Parecia ser algo muito importante e íntimo, pois nem ao seu diário, ele relatou com clareza. Não deixou transparecer do que se tratava realmente. Os relatos eram enigmáticos e a falta de clareza era proposital temendo que alguém viesse a tomar conhecimento das palavras reveladoras guardadas naquele invólucro de capas azuis.
João Miguel dizia de uma flor entre as flores.
A referida flor ele chamou de Rosa e tentando explicar o quão bela ela era, a qualificou como a flor mais bonita do jardim, sem revelar a localização do vergel.
— Rosa tem um sorriso gostoso, uma boca sedutora, olhos de menina que parece ter mãos de tanto que me pegou, e nem cheguei a estar tão próximo dela, tem personalidade forte – é o que parece- já a fragilidade nata de mulher é notada na delicadeza de seus gestos e na sensibilidade no trato com as pessoas. Disse ele num trecho de seu diário.
Quanto mais ele escrevia, mais ia dando contornos de mulher a flor de nome Rosa. Descrevia particularidades e trejeitos, sonhava e projetava momentos com ela, ia deixando escapar inconscientemente ou não, que a Rosa entre as flores se tratava de uma flor mulher.
A flor que chamou de Rosa era uma linda mulher que ele observava constantemente cuidando das flores de sua casa. Ela fotografava as rosas bonitas de seu jardim, sem saber que para João Miguel, era a mais bela entre todas as flores.
Ele ficava na pracinha próximo a casa dela e ela nem imaginava que era observada a distância por um homem que a tinha como uma deusa.
Secretamente e sem se deixar notar João Miguel procurou saber do que se ocupava a bela flor mulher, e descobriu uma coisa importante sobre ela.
— A minha Rosa tem consigo o doce dom de escrever, não sei se tem um diário, mas o que pude apurar dão conta de uma ouro-pretana reverenciada e de considerável respeito. Maestrina na arte de transformar seus pensamentos e ideias em palavras contundentes e esclarecedoras.
Mesmo com todas essas descobertas ele não conseguiu estar com ela. Permaneceu à distância contemplando a bela imagem, e paralisado pelo fascínio de tanta coisa concentrada numa só mulher, não conseguiu ir além.
Já nas últimas páginas de seu diário João Miguel relata algo impressionante, prenúncio de que Rosa significava muito para ele.
— O encantamento, o charme, a beleza me levaram a desejar seu abraço, seu beijo, ser dela, mas num piscar de olhos percebi que era fã. Por isso escrevi esse diário.
Fui envolvido por um turbilhão de sentimentos que me fez confuso diante dela.
Num momento eu a desejava, noutro me via diante de uma mulher de brilho tão intenso que preferi o anonimato e preservar essa mistura que se instalou dentro de mim.
Continuo a vê-la por aí, e a viver as sensações que não consegui qualificar, mas o anonimato me permite ficar perto dela e quase senti-la. Vou seguir assim, é tudo que posso.E finalizou:Peço desculpas às flores, pois Rosa é mesmo a mais bela.
Peço também desculpas a todos, pois meu nome não é João Miguel.
Não vou dizer quem sou, mas que existo.
Da Rosa eu descobri o nome, mas também não vou dizer, dei esse nome a ela, por saber que gosta das flores e por ser uma delas.
Deixarei esse caderno sobre esse banco de pedra e não mais voltarei aqui, quem encontra-lo espero que compreenda as palavras nele contidas. É um desabafo onde descrevo uma mulher bela como uma flor, que sendo assim me encantou, faço conhecer seu dom de escrever que além de mim, encantou a todos.
Que sentimento é esse que me prendeu a ela? Será que foi amor?
E essa história se tornou conhecida porque alguém encontrou o diário, mas o enigmático relato não traz os nomes dos protagonistas. Talvez um estudo mais minucioso os revele nas entrelinhas.