Vovó Chica 

    Por: William Santos

    Me chamo Vovô Chica. Estou aqui para escrever a minha história. Nasci por volta de 1700 a 1750. Nessa época, todo mundo sentia que a vida era normal. Acordávamos cedo, apanhávamos sem saber o motivo e vivíamos em uma situação precária. Durante o período de 1501 a 1870, aproximadamente 12,5 milhões de africanos foram vendidos como escravos para o continente americano. Desses, cerca de 4,8 milhões foram enviados para o Brasil até a segunda metade do século 19. Nessa situação encontravam-se meu pai, Tibúrcio, e minha mãe, Meliganda. Eles vieram nessa situação precária e se conheceram no Brasil, em uma senzala insalubre. Infelizmente, eles morreram quando tentaram escapar, e a sinhá Fátima optou por me adotar.

    Senhora Fátima tinha uma história muito semelhante à da mãe de Moisés na Bíblia. Após diversas tentativas de ter um filho, ela não conseguiu e se culpava. De uma maneira interessante, minha vida acabou se ligando à dela. Quando meus pais foram assassinados por tentarem escapar, Fátima viu uma criança e percebeu que eu não tinha culpa por aquela situação. Eu era inocente, com olhos arregalados e cheios de medo. Logicamente, eu tinha apenas alguns meses e não me lembro de nada, mas essa é a história que ouvi dizer.

    Quando era adolescente, vivi uma situação indelicada. Aquele que considerava meu pai tentou me assediar, mas por viver num período em que o preto não tinha voz, me expulsaram de casa. Minha mãe adotiva nunca mais saiu de casa até sua morte. Segundo os escravizados, muitos relatavam que minha mãe era violentada tanto sexualmente quanto fisicamente, e o desgosto era muito grande, a vida realmente não era fácil.

    A minha vida começou com muita tristeza e com marcas dolorosas, mas com o tempo fui vendida e encontrei um novo dono. Era difícil entender por que era tratado como objeto. O que me deixava diferente dos demais? Por que minha cor era diferente dos meus donos? Por que meus amigos chamavam os santos por um nome estranho, e as danças que nunca entendia em tempos de festas de São Jorge e Sebastião; Por que eles cantavam em línguas que nunca ouvi falar?

    Com o tempo comecei a respeitar aquela cultura, porque era minha. Lógico que o ritmo era envolvente, estava ali para orar com meus amigos as orações de São Judas, Nossa Senhora dos Rosários dos Pretos. Estava ali professando minha fé “Católica”. Naquele período, única religião permitida nessa terra verde e amarela.

    Eu conheci Seu Joaquim na juventude, tínhamos por volta de 17 anos e começamos a conversar. Mas não tínhamos um tempo favorável para ficar de papo, então optamos por nos casarmos na igreja que começou a ser construída de 1733 a 1785; conta-se que foi erguida pelo escravo alforriado conhecido como Chico Rei. A igreja estava em construção, então foi uma festa bem simples e nem tivemos tempo de comemorar, pois no outro dia teríamos que trabalhar e não haveria tempo para namorar.

    Era uma manhã de domingo, como de costume, me arrumei e fui para a missa. Na igreja havia uma imagem de São Judas Tadeu, simples e com diversas promessas penduradas. Encontrei naquela simplicidade um conforto e aconchego, logo comecei a fazer minhas preces. Ajoelhada no chão de terra, meus olhos estavam cheios de lágrimas, uma vez que os negros não tinham direitos garantidos. A sinhá que me acompanhava era uma mulher que tinha uns 18 anos, uma moça simples de coração muito bom, que me tratava com muito respeito e sempre arranjava um jeito para me agradar. Naquele domingo, a sinhá percebeu que eu olhava atentamente para a imagem de São Judas Tadeu e sussurrou no meu ouvido:

    “Vossa mercê, percebi que você está admirando a imagem de São Judas Tadeu. Na minha casa tem uma imagem parecida, mas encontra-se em estado de calamidade.”

    Quando chegamos em casa, a sinhá me deu a imagem, havia alguns cupins caminhando nela, mas mesmo assim agradeci e guardei nas minhas coisas. Ao longo daquele dia aconteceram várias coisas que me magoaram. A sinhá sendo estuprada pelo seu esposo, os negros sofrendo com a crueldade dos feitores. Queria que aquele dia terminasse, apenas isso.

    Naquela noite arrumei meu leito, a sinhá não apareceu como de costume. Mas ouvia seu choro, visto que o quarto dos escravos viviam dentro da casa, era próximo do dela. Então peguei a imagem de São Judas Tadeus para fazer minhas preces, entretanto ouvi um barulhão, de repente vi uma fumaça e apaguei.

    A casa havia desmoronado, não conseguíamos entender os motivos, dado que as estruturas não apresentavam indícios. Lembro que ao acordar, ouvi gritos e ranger de dentes, enxergava apenas escuridão, mas de repente vi uma luz. Era minha imagem de São Judas Tadeu que estava ao meu lado, encontrava-se inteira. Apareceu o meu esposo Joaquim, que tirou os entulhos que estavam sobre mim. Ele me carregou e me deu um chá de arruda e alecrim para beber, passou em meus ferimentos algumas ervas. Confesso que me senti protegida, visto que era um homem forte e ao mesmo tempo sensível. Ele tinha um cachimbo, que havia confeccionado aos doze anos de idade. Ao começar a fumar o pito, comentou comigo que “Meu amor, que bom que você sobreviveu, não conseguiria viver minha vida sem você.” Naquele momento comecei a chorar, visto que o machado de São Judas Tadeu estava brilhando quando me encontrava, debaixo daquele entulho. Naquela tragédia, sobreviveram duas pessoas, eu e o meu Joaquim. Viva Nossa Senhora do Rosário e São Judas Tadeu!

    William Santos

    Texto por William Santos, jornalista e assessor de imprensa. Entre em contato para trabalhos jornalísticos, edição, captura de vídeo e fotografia através do e-mail jornalistawilliamsantos@gmail.com. Para WhatsApp, utilize o número (31) 99374-9567. Aproveite para conhecer meu Instagram: @wswillsantos.

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