Mais de cinco mil pessoas aguardam por um transplante em Minas

    Cresce número de famílias que se recusam a doar órgãos de parentes mortos, o que faz aumentar a fila de pacientes que esperam por uma vida nova

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    Ismael Maicon, 31 anos, aguarda por um transplante de rim. Na foto, ele aparece rodeado pelos profissionais de saúde que o acompanham nas sessões de hemodiálise (Foto: Arquivo Pessoal)

    Mais de cinco mil pessoas aguardam por um transplante de órgãos em Minas Gerais. Os dados são do MG Transplantes e contabilizam os registros feitos até o início de setembro deste ano. Além da queda gradativa no número de doações, a recusa familiar também aumentou, fatores que contribuem para que a fila de espera fique cada vez mais extensa e demorada. No estado, 50% das famílias entrevistadas para a doação esse ano se negaram a autorizar o procedimento. Antes, esse número chegava a 30%.

    Dos 5.234 pacientes que estão na fila para transplante de órgãos em Minas, mais de 50% precisam receber um rim. São 2.789 pessoas que convivem semanalmente com sessões de hemodiálise e com a espera diária para encontrar um doador compatível.

    Ismael Maicon, de 31 anos, trabalhava como celeiro em Dores de Campos, na Zona da Mata mineira. Em fevereiro deste ano, descobriu um problema nos rins e, desde então, teve que abandonar as atividades diárias para tratar a doença. Ele faz hemodiálise durante quatro horas, três vezes por semana. “No começo foi difícil, porque eu sou novo, trabalhava, tinha a vida ativa, mas a saúde foi piorando. Foi complicado aceitar, mas eu tenho muita fé em Deus e em Nossa Senhora Aparecida.”

    A condição debilitada fez com que Ismael estivesse apto a entrar na lista de espera para receber um rim. Desde maio deste ano, ele, a esposa e os dois filhos convivem com a ansiedade pelo fim do tratamento. “Eu não sei se é hoje, se é amanhã, se é ano que vem, fica aquela expectativa. Todo o dia a gente fica no aguardo. Meus filhos ficam me perguntando, ‘pai, que dia você vai acabar de fazer hemodiálise?’. E eu respondo, ‘filho, tem que esperar mais um pouquinho.’”

    Enquanto não encontram um doador compatível, ele e a esposa Joice estão realizando os procedimentos para verificar se ela pode fazer a doação. “Eu vou me sentir muito bem em poder ajudar ele, tirar ele da hemodiálise. Eu agradeço que a máquina esteja ajudando ele a viver até agora, mas eu vou me sentir muito privilegiada de poder tirar ele disso.”

    Doação de órgãos está com queda em todo o país

    No Brasil, de acordo com o levantamento mais recente divulgado pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), até o mês de junho deste ano, 45.664 pessoas estavam na fila de espera por um transplante. Segundo o Ministério da Saúde, um dos principais fatores que contribuíram para a diminuição no número de doações e, consequentemente, o aumento da fila de espera, é a baixa taxa de autorização familiar. Isso porque no Brasil, segundo a legislação, mesmo que a pessoa expresse em vida o interesse de realizar o procedimento, apenas a família pode autorizá-lo.

    O sistema de captação do MG Transplantes registrou uma leve queda em relação às doações feitas até agosto de 2021 no estado. Foram realizados 1.031 procedimentos, enquanto que, no mesmo período do ano passado, a rede somou 1.051. Apesar da redução entre o período não ser grande, o cenário já era de declínio em relação ao ano de 2019, quando foram realizados 1.539 até agosto. Ou seja, se compararmos 2021 com 2019, a redução chega a 33%.

    Em entrevista à Tribuna, o presidente do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado, ressaltou que, além da recusa familiar, a queda nas doações também foi influenciada pela pandemia. “Todo paciente que teve um diagnóstico de morte encefálica e que foi admitido com algum histórico de infecção pela Covid-19, era automaticamente descartado. Então, se ele teve um quadro infeccioso respiratório, ou se teve contato com uma pessoa positiva, aquela doação não poderia ser usada. Além disso, com a pandemia, também houve uma diminuição no número de acidentes e traumas, que correspondem a grande parte dos doadores.”

    Ainda segundo ele, a cirurgia mais afetada foi a de transplante de córnea, já que o procedimento é considerado eletivo e, durante um longo período, essas cirurgias ficaram paralisadas. O transplante é necessário, na maioria dos casos, em pacientes que são acometidos de ceratocone, uma doença que torna a córnea mais opaca, resultando em uma possível perda da visão, ou quando há uma perfuração no globo ocular. “Existe uma alta procura de córnea, mas como o número de doadores de córnea é maior do que de rim, a fila acaba sendo menor.”

    Hoje, em Minas Gerais, mais da metade das pessoas que fazem parte da lista de espera precisam de um transplante de rim. São 2.789 pessoas em todo o estado, o que corresponde a 53,28%. A segunda maior procura é referente ao transplante de córnea, somando 42,73%, um total de 2.237 pessoas. A espera por um fígado, medula, rim, pâncreas e coração corresponde a quase 4% do total de pessoas que fazem parte da fila.

    Mesmo quando a pandemia acabar, a previsão do presidente do MG Transplantes é que esse sistema rígido de testagem continue. “O Ministério da Saúde ainda recomenda que seja feito o teste do RT-PCR em todos os doadores, a gente tem que testar o máximo possível para evitar o risco de doenças entre o doador e o receptor. Não só de Covid, mas de outras coisas, hepatite, aids.”

    Paciente recebe rim de um amigo

    André Couto, morador da cidade de Petrópolis (RJ), a cerca de 110 km de Juiz de Fora, realizou o procedimento de transplante de rim em 2013, na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora. Aos 20 anos ele descobriu uma doença renal crônica e passou a fazer hemodiálise aos 28. Depois de três anos e meio em tratamento, a condição de saúde começou a ficar mais debilitada, tornando necessária a realização do transplante. Os familiares não conseguiram fazer a doação, e a ajuda veio de um amigo da época da escola. “O Max é uma pessoa que eu conheci ainda no ensino médio, que se tornou um grande amigo meu, hoje é esposo de uma prima minha. Vendo essa situação da minha saúde, de risco iminente de ir a óbito, ele se dispôs a doar. Foi um momento muito marcante para mim, muito profundo, muito forte.”O conteúdo continua após o anúncio

    Para ser um doador em vida, é necessário ter uma boa condição de saúde, o que, na época, foi um desafio para Max. “O médico disse que se ele quisesse doar ia ter que perder peso. Dentro de dois a três meses, o Max perdeu quase 20 quilos, por conta própria, correndo todo dia, fazendo dieta. Eu pude perceber essa vontade dele em me ajudar, em doar-se para me possibilitar maior qualidade de vida.”

    André conta que a cirurgia de transplante pela doação feita pelo amigo foi um ato de amor, que possibilitou ele voltar à vida “Eu pude ressuscitar os sonhos de menino de me formar em direito, de ter uma família.”

    De acordo com o Registro Brasileiro de Transplantes realizado pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora é a sexta instituição no Brasil referência em transplantes renais. Ela também ocupa o primeiro lugar entre as unidades transplantadoras de Minas Gerais desde 2019.

    O médico Gustavo Fernandes é o responsável pelo setor de transplantes no hospital e acompanha diariamente pacientes que fizeram a cirurgia e aqueles que estão na fila esperando por um órgão. “O transplante que a gente mais realiza é o renal. Infelizmente não tem órgão para todo mundo, então, nem todos os pacientes inscritos na lista serão transplantados. Por isso que a gente precisa aumentar a campanha de doação de órgãos no país.”

    Segundo ele, a recusa familiar na Santa Casa chega a 30% e é menor do que a média registrada nacionalmente. “No hospital não tivemos muita queda no número de transplante de doador falecido porque a gente conseguiu manter a atividade de transplante toda funcionando no nosso hospital.”

    André (de bermuda) recebeu um rim do amigo Max. “Eu pude ressuscitar os sonhos de menino de me formar em direito, de ter uma família.” (Foto: Arquivo Pessoal)

    Avanços no transplante de medula

    O Hospital Universitário (HU) de Juiz de Fora realizou, em julho deste ano, um transplante de medula óssea a partir de doadores haploidênticos, ou seja, pessoas da mesma família com uma composição genética parcialmente compatível. Responsável técnico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do HU, o médico Abrahão Hallack explica que essa técnica permite aumentar a chance de encontrar doadores entre os próprios familiares, agilizando o processo. “Com esse transplante, o problema do doador praticamente acabou, porque todo mundo tem alguém que é pelo menos metade igual a ele, como pai, mãe e irmão.”

    Mesmo com esse avanço, grande parte dos pacientes que necessitam de transplante de medula ainda depende do banco de doação, que funciona como um grande banco de dados. As informações dos doadores são cruzadas com a dos pacientes para verificar se existe compatibilidade. “Se algum for semelhante, começa a estreitar a procura desse doador. Quanto mais gente cadastrada, mais chance de achar uma medula compatível” afirma Hallack.

    Responsável técnico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do HU, Abrahão Hallack ressalta a importância de aumentar o número de inscritos no banco de doadores de medula. “Quanto mais gente cadastrada, mais chance de achar uma medula compatível.” (Foto: Arquivo Pessoal)

    ‘É raro o momento que ficamos sem pacientes em fila’

    O Monte Sinai, também em Juiz de Fora, atualmente, realiza transplantes de fígado, córnea e medula óssea. Desde 2013, já foram feitas 342 cirurgias. Ano passado, a instituição recebeu o credenciamento para a realização de transplantes de rins e agora está fazendo a preparação dos processos necessários.

    Frederico Cantarino é membro da equipe de Transplante Hepático do Hospital Monte Sinai e reforça que o hospital não é o maior foco de doadores em Juiz de Fora, porque não atende muitos pacientes com traumas automobilísticos. No entanto, a equipe realiza constantemente o trabalho de captação dos órgãos. “A demanda sempre existe. É raro o momento que ficamos sem pacientes em fila. Uma coisa triste que nós vemos acontecendo é a gente esvaziar a fila com óbitos e não com transplante.”

    Além da dificuldade em aumentar o número de doadores por conta da recusa familiar, ele ressalta que em Minas Gerais existe uma deficiência na notificação de morte encefálica e que é necessário aumentar a abertura desses protocolos. “Basicamente, a gente vai perceber, com o passar do tempo, que aumentando o número de notificações de potenciais mortes encefálica, a gente vai começar a ter alguns mais potenciais doadores.”

    Membro da equipe de Transplante Hepático do Hospital Monte Sinai, Frederico Cantarino diz que é preciso quebrar tabus e preconceitos em torno da doação de órgãos (Foto: Arquivo Pessoal)

    Como se tornar um doador

    Existem dois tipos de doadores de órgãos, o doador com morte encefálica e o doador em vida. A morte cerebral costuma ser irreversível e é diagnosticada quando o paciente não apresenta mais funções neurológicas. Nesses casos, todos os outros órgãos ainda funcionam e podem ser doados se a família do paciente autorizar. Para ser um doador em vida é preciso estar saudável e realizar o procedimento apenas se a doação não comprometer o próprio organismo. Também é necessário que o paciente seja juridicamente capaz, já que a doação necessita de uma autorização judicial.

    Alguns tabus ainda costumam contribuir para o aumento da recusa familiar, como, por exemplo, a ideia de que os órgãos doados serão utilizados em experiências científicas ou até mesmo a possibilidade do cadáver do doador ficar desconfigurado, necessitando a utilização de um caixão fechado. Os especialistas afirmam que nenhuma dessas afirmações é verdadeira e que todos os hospitais que fazem a retirada de órgãos cumprem um protocolo rígido que, entre as regras, determina a obrigatoriedade na recuperação da mesma aparência que o doador tinha antes da retirada.

    Frederico Cantarino reforça a importância de quebrar os tabus e preconceitos em torno da doação e que a vontade de ser um doador seja comunicada à família. “O maior trabalho que a gente pode fazer é o de conscientização, porque, em última instância, a doação é uma decisão que um familiar toma por um ente querido. A gente deseja que ninguém nunca tenha que estar em uma posição como essa, mas a gente gostaria que todas as pessoas tivessem essa vontade manifestada, porque a doação é uma transmissão da vida. A vida que segue adiante.”

    Fonte: tribunademinas.com.br.