Minas  e os fundamentos do Movimento Modernista Brasileiro

    Por: Mauro Werkema

    Na Semana  Santa deste 2024  ocorre o  centenário  da visita a Minas da famosa caravana de participantes do Movimento  Modernista de 1922, liderada por Mario de Andrade,  e que  assinala um marco histórico e cultural que  revela o esplendor do século Dezoito mineiro. Os visitantes, intelectuais participantes da    Semana de Arte Moderna, que ocorre  em São Paulo, de 11 a  18 de fevereiro de 1922,   irão dizer que encontraram nas cidades histórias mineiras, especialmente Ouro Preto, os fundamentos estéticos e ideológicos do  Movimento Modernista  e que revelam a existência de uma cultural autenticamente brasileira, liberta dos cânones europeus. A celebração desta, e seus desdobramentos,  inserem-se como marcos  relevantes  na história cultural brasileira e mineira.

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    Esta história começa em  10 de junho de  1919 quando   Mário de Andrade vem a Mariana  visitar o poeta mineiro Alphonsus de Guimarães, onde fora juiz municipal e já com  fértil obra poética que lhe daria, muito anos mais tarde, o reconhecimento como um dos maiores poetas simbolistas brasileiros.  Mário  relata  que  “em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridão de sua sala de trabalho, sozinho e grande” e descreve seu encontro   como “uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele’. Nesta viagem, Mário de Andrade  conhece Ouro Preto e dirá que encontrou, “perdida entre as  montanhas de Minas” e preservada,  uma “cidade  histórica,  artística e cívica”. E traz a Minas, passando por São João del-Rei,   Tiradentes, Congonhas e Ouro Preto, Oswald de Andrade, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta de origem suíça em visita ao Brasil,  Blaise Cendrars.

    Os visitantes dirão que encontraram no século  XVIII  mineiro, no campo das artes visuais, o “lastro cultural de uma identidade nacional” . E que identificaram nas   históricas mineiras   os elementos de uma “ autêntica arte   brasileira”, com uma “autonomia cultural” nas Artes Plásticas, na arquitetura, no conjunto da “obra barroca mineira”,   constituindo um excepcional surto de criatividade de artistas, mestres e artesãos,  libertando-a dos cânones estéticos  importados da Europa.

     Mário publica  na “Revista do  Brasil” quatro crônicas sobre  ”Arte religiosa do Brasil,  abordando a arte encontrada em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João del-Rei. E diz que “na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é amor à linha curva, aos elementos contorcidos e inesperados –  passa da decoração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem só na decoração posterior mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”. Em 1928 escreve sobre  Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho e sua obra, dando-lhes dimensão  cultural excepcional, iniciando a  divulgação do seu nome.  Outros integrantes da caravana publicam trabalhos sobre a arte barroca mineira, despertando o interesse sobre Minas e motivando várias viagens de estudo às cidades históricas.

    Mário qualifica Aleijadinho, Antônio  Francisco Lisboa,  como “gênio brasileiro por excelência” e considera  Minas Gerais como o espaço de formação de uma arte nacional, onde se encontra o sentimento de identidade com a nacionalidade. E assinala que o “autenticamente brasileiro” marca o movimento modernista no conceito de autoridade e liberdade da arte religiosa, distanciada do litoral e da troca de experiência rotineira com a arte europeia (“O Modernismo em Minas Gerais”, Epaminondas Bittencourt, 2022; “Mário  de Andrade em Minas Grais”, Natal, M.C, 2022.                                                                                      

    O mineiro Gustavo Capanema tornou-se, em  1934,  ministro da Educação de Getúlio Vargas. O poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos líderes do Movimento Modernista mineiro,  neste mesmo ano, muda-se para o Rio e ocupa a chefia de  Gabinete de Capanema. Em 1935 Mário de Andrade, a pedido de Capanema,  apresenta o anteprojeto do Decreto Lei 25, elaborado em sua redação final por outro modernista mineiro,  Rodrigo Melo Franco de Andrade.  Mário  propõe a proteção do   patrimônio cultural brasileiro e orienta a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,  que ocorre a 30 de novembro de 1937, por ato do presidente Getúlio Vargas.  Com inspiração modernista, o patrimônio histórico e artístico nacional passa a ser definido como o “conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja preservação seja de interesse público, seja por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.  

     E será esta consciência de identificação e proteção da cultura brasileira  a  marcante contribuição da Semana de Arte  Moderna de 1922  e que se concretizará,  de maneira efetiva e sistematizada, com a criação do  SPHAN (hoje IPHAN) a partir de 1937.  É significativo lembrar que o pensamento modernista buscava justamente romper com o tradicionalismo cultural, com uma renovação estética, liberta  dos cânones importados.

    O  SPHAN  pesquisou em todo o Brasil, começando pelas  cidades e igrejas históricas mineiras, as primeiras a serem tombadas, onde encontrou as “raízes de uma cultura brasileira original”, e com “uma originalidade nacional”, diferenciada dos estados do litoral, bem anteriores ao surto artístico mineiro e  tipicamente portuguesas. Mário e seus seguidores dedicaram-se e, especialmente os técnicos do  então SPHAN, a  buscar explicações para este fenômeno, que ocorre nos primórdios da sociedade mineira setecentista, como  herança de uma rápida e conflitiva  ocupação territorial provocada pela busca do ouro,  da rápida urbanização e um novo tipo de sociedade, a religião opressora  da  Contrarreforma e a atuação mais livre das ordens religiosas, as restrições  opressivas do regime colonial português, os anseios de autonomia  e de liberdade, manifestos por uma  constante rebeldia,  e a  consequente formação de  consciência crítica decorrente da formação de uma elite que conhece a Ilustração e o Iluminismo que se alastram na Europa nos anos finais do século XVIII. Forma-se nas cidades históricas de Minas “uma sociedade de pensamento”, que fala em independência e em república.  E surge  uma nova classe social, os mulatos brasileiros, artesãos de reconhecido pendor artístico, herança de sua condição social e racial.

    Mário de Andrade dirá (“Arte Religiosa do Brasil em Minas Gerais”) que “foi neste meio oscilante de inconstâncias – a Minas Gerais setecentista – que se desenvolveu a mais característica arte religiosa do Brasil.  A Igreja pode aí, mais liberta das influências de Portugal, proteger um estilo mais uniforme, mais original que os que abrolhavam podados, áulicos, sem opinião,  nos outros centros”. E conclui: “As igrejas construídas por portugueses mais aclimatados ou por autóctones algumas,  provavelmente como o Aleijadinho, desconhecendo o Rio e a Bahia,  tomaram um caráter bem mais determinado e, poderíamos dizer, muito mais nacional”.  Mário  ressaltará a  “opulência mineira no século XVIII” e a “carência paulista de bens históricos”.

    O SPHAN descobre e aponta os  grandes artistas do período, além de Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa, que vive de 1737/38 a  1814), como Francisco Xavier de Brito,  José Coelho Noronha, Francisco de Faria Xavier, Francisco  de Lima Cerqueira, escultores e entalhadores, o arquiteto e pedreiro Manoel Francisco Lisboa, o pintor Manoel da Costa Athayde e  muitos outros. Mas Minas desenvolvera  outros expoentes culturais, resultado da libertação intelectual,  na arquitetura,   escultura, literatura, na música e, já no final do século XVIII, no pensamento político iluminista, que  inspira a revolução Francesa e a Inconfidência, ambas de   1789. Os inconfidentes  antecipam o pensamento da república e da independência, alcançada em 1822.

    Será em Minas que a equipe técnica do SPHAN fundamentará critérios e soluções para intervenções preservacionistas e de restauração, nos elementos artísticos e estruturais das igrejas e  construções mineiras coloniais. Pesquisará as  edificações e seus acervos, nas fontes documentais,  livros das associações religiosas, irmandades e confrarias, câmaras municipais. E irá expandir extraordinariamente o conhecimento do processo histórico  e das condições  e fatores propiciadores do surto de criatividade artística e cultural do século XVIIII mineiro.  

    Lourival Gomes Machado, (“Barroco Mineiro”, 1968),  maior  conhecedor do Barroco Mineiro, autor desta denominação, diz que “em Minas, no século XVIII, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez,  uma autêntica cultura brasileira”, com criatividade e expressões libertas dos estritos cânones importados da arte europeia. Diz ainda  que “nasceria em Minas  a mais forte, mais farta e mais bela  expressão  de uma arte verdadeiramente brasileira”.

    Estudos e interpretações mais recentes indicam que ocorreu nas cidades históricas mineiras, especialmente na antiga Vila Rica, “a terceira onda civilizatória das Américas, a primeira no México, com os astecas, na Península do Yucatan, que já em 1315 criaram  Tenochtitlan, capital do império asteca e  origem da capital mexicana  e, a segunda, no Peru, em Lima, pelos incas, que foi sede do vice-reinado espanhol na América, complementadas pela cultura espanhola.  Ambas com títulos de Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco. O fenômeno mineiro possui similaridades com os outros: concorrem em Minas fatores como a povoação rápida e conflituosa pelo ouro, em ação pioneira na ocupação do interior do Brasil-Colônia, o insulamento geográfico em meio inóspito, os conflitos constantes pelo domínio territorial e resistência ao jugo português, o caráter ostentatório do barroco da  Contrarreforma católica, conformando um caldeamento de condicionantes naturais e humanos. Estes condicionantes singulares produzirão, já  no século XVIII,   também obras de literatura, música, arquitetura, pintura, escultura e, até nossos dias,  a diversidade e a riqueza das artes das boas práticas do bem viver nos diversos ramos da cultura popular e folclórica, como a famosa culinária e o artesanato. 

    Já em 1733, na inauguração da Matriz do Pilar, em Vila Rica, a procissão de trasladação do Santíssimo,  chamada de “Triunfo Eucarístico”, revela uma sociedade irrequieta,  mas com gosto pelo suntuoso, pela ostentação e pelas exterioridades triunfalistas, típicas do estilo barroco da Contrarreforma, com que o catolicismo contrarreformista, aliado do Absolutismo,  procura vencer o protestantismo e a descrença que já nasce com o iluminismo, que alimenta os embates entre a fé e a razão. Nas festas das irmandades e  festivas procissões,  revela-se o barroquismo, que se torna “estilo de arte e  de vida”, como  nos  fala Affonso Ávila, mestre da decifração do Barroco Mineiro.  

    Dá-se o “abrasileiramento” da produção artística, emancipatória nos seus  partidos arquitetônicos,  nos ornatos  e  soluções plásticas, nos elementos escultóricos,  libertando-se do estilo jesuítico e do barroco Ibérico,  das primeiras edificações, com a presença dos primeiros “filhos da terra”, já libertos da escravidão, dedicados às profissões artesanais.  Expressão maior é Antônio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, que nasce  de pai português e escrava negra, e que elevará a arte mineira a reconhecimento mundial.  Em São Francisco de Ouro Preto, Aleijadinho marcará seu “estilo de passagem’, do Barroco para o Rococó.  Para Mario de Andrade   “na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é o amor à linha  curva, nos elementos contorcidos e inesperados – passa da decoração para o próprio plano do edifício.  Aí os elementos decorativos não residem apenas na decoração posterior  mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”.

    O pensamento modernista terá na literatura mineira, a partir da década de 20,  um atuante grupo social, bem definido,  e que também fará uma reavaliação crítica do século XVIII mineiro. Serão escritores,  poetas e jornalistas, com fértil produção,  com  destaque para nomes como Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Abgar  Renault, Aníbal Machado, Joao Alphonsus, Avelino Fóscolo, Augusto de Lima, Eduardo Frieiro,  Diogo de Vasconcelos, Mário Matos, João Dornas Filho,  e muitos outros, em movimento que se estende  para Cataguazes, Juiz de Fora, Campanha. Merecem lembrança, já em tempos mais recentes, nomes como Milton Campos, Emílio Moura, Mário Casasanta, Murilo Mendes,  Pedro Nava, Gabriel Passos,   Martins de Almeida,  Alberto Campos, Gregoriano Canedo, Mário de Lima,  Gustavo Capanema,  José de Guimarães Alves, Aires da Mata Machado,  Djalma e Moacir Andrade,  frequentadores da Livraria Francisco Alves e  do Café Estrela,  na ruja da Bahia. Duas publicações marcam a produção literária modernista: “A Revista”, de 1925, e “Leite Criolo”,  de 1929, esta criada por João Dantas Filho, Aquiles  Vivacqua e Guilhermino Cesar. Integraram  o grupo Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Ascânio Lopes, integrantes do Grupo de Cataguazes, fenômeno artístico e literário que distingue a cidade na cultura mineira. Da geração nova devem ser lembrados Godofredo Rangel, Abílio Barreto, Arduino Bolivar e José Oswaldo de Araújo. E muitos outros.  Na literatura, o movimento modernista  é fenômeno singular e excepcional, que valoriza culturalmente a então jovem capital, Belo Horizonte, na primeira metade do século XX.

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